Nem todas tiveram a mesma sorte

Quando eu tinha uns 9 anos, minha mãe já deixava que eu e a minha irmã fôssemos para alguns lugares sozinhas. Uma voltinha no bairro, a ida até a escola que era próxima de casa, ao clube, etc. Era preciso ligar quando chegássemos ao destino, avisando que estava tudo bem.  Em um desses dias, enquanto atravessava a rua junto com a minha irmã, me viro para o lado e vejo um homem, de uns 30 anos mais ou menos, em cima de uma bicicleta. Ele estava com a calça abaixada, enquanto dizia palavras obscenas e fazia gestos nojentos a nós duas, meninas de apenas 9 e 7 anos.

Naquele dia, eu não liguei para a minha mãe avisando que estava tudo bem. Liguei aos prantos, depois de retornar para a casa correndo de medo. Entrei, fechei todas as janelas e fiquei escondida junto a minha irmã, dentro do nosso quarto. Eu não sabia muito bem o que aquele homem estava fazendo ou dizendo. No entanto, eu não tinha dúvidas de que ele poderia me fazer muito mal. Tinha medo de que ele voltasse e nos machucasse. Eu queria me proteger e proteger também a minha irmã, que não entendia muito bem o que estava acontecendo.

Quando minha mãe chegou em casa, com muito esforço, eu contei a ela o que havia acontecido. Lembro que ela saiu pela vizinhança, descrevendo o homem segundo o que eu havia lhe contado e questionando se alguém poderia conhecê-lo. A cada esforço da minha mãe, eu me sentia ainda mais envergonhada. Não queria que as pessoas ficassem sabendo. De alguma forma, me sentia culpada por ter provocado qualquer tipo de desejo em um desconhecido.

Por sorte, nada aconteceu a nós naquele dia. Foi apenas um susto. O primeiro de muitos que viriam e que estão por vir. Ser mulher é conviver com o medo diariamente. É andar desconfiada quando se está sozinha na rua. É ter que ouvir cantadas e palavras obscenas a todo momento. É conviver com pessoas que consideram o abuso ou o estupro uma consequência da minissaia, da provocação da mulher ou de qualquer outra justificativa banal e sem nexo.

É saber que uma menor de idade foi estuprada por mais de 30 homens e que nenhum deles teve sequer a intenção de conter aquilo. E o pior: saber que poderia ser eu no lugar dessa menina. Poderia ser a minha irmã. A minha amiga. A vizinha. Você. Poderia ser qualquer uma de nós. Quanto a pobre garota, infelizmente, ela não teve a mesma sorte que eu tive aos 9 anos. Ela não pôde pedir socorro à mãe. Enquanto eu tive que me recuperar do susto daquele dia, ela terá que se recuperar de um grande trauma, talvez nunca superado totalmente.

Enquanto isso, a mídia continua se calando. Meninas crescem com medo de andar na rua. Homens continuam agarrando mulheres à força. O assédio na rua, no trabalho ou em casa continua a todo vapor. Pessoas (homens e outras mulheres) continuam culpabilizando as vítimas. O apoio continua negado. E as coisas seguem.

Aí depois me questionam o porquê da necessidade do feminismo. Poupem-me, vai.

Moça, não é apenas coisa da sua cabeça. Leia aqui.

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4 Comentários

  1. Helena Liborio Pires says

    Não me sinto a pessoa certa para comentar. Desde menina as mães de minhas amiguinhas ou de meninas de minha própria família, quando lhes perguntavam se podiam ir a algum lugar, as mães perguntavam se eu também iria, se eu fosse, deixavam… Meu apelido era Gibóia… A personagem adulta que eu imitava era Nioka, a Rainha das Selvas…Eu saíra do sertão com oito anos…
    Por que as meninas de hoje andam fantasiadas de mulheres adultas? Usam maquiagem, etc? Não seria tal mudança de costumes um fator desencadeante da ascensão da Pedofilia?
    Os únicos homens com quem co-habitei foram meus irmãos a quem nunca vi sem camisa…Contudo, em nosso grupo havia duas meninas que iniciaram a vida sexual na puberdade, penso ter sido com o consentimento das mães…cujas puladas de cerca eram conhecidas…Era meados dos anos quarenta…
    Escrevi este pequeno relato para mostrar que a educação e costumes colaboram para a promiscuidade contemporânea. Contudo, estou consciente de que não justificam a aberração do comportamento de alguns homens…Impossível avaliar e julgar tamanha selvageria neste pequeno espaço…talvez seja prudente avaliar a alimentação hormonal…HLP/hlp

    1. Isabela Nicastro says

      Helena,
      Desculpe mas terei que discordar da sua opinião.
      Também não concordo com o processo de “adultização” das meninas que, desde muito cedo, já precisam se preocupar com a aparência. Porém, acredito que isso também seja uma consequência de uma sociedade machista que obriga as mulheres, desde meninas ainda, a cuidarem do corpo, a se comportarem de tal e tal forma para serem consideradas femininas. De forma alguma isso contribui para a pedofilia ou qualquer tipo de abuso. Se fosse assim, apenas garotas adultizadas seriam alvo de abusos. E não é bem isso que observarmos.A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. E são mulheres de todas as idades e de todos os estilos. Não há justificativa para um abuso ou estupro. A única saída acredito é nos unirmos para fortalecer ainda mais as ideias feministas, no combate ao machismo, a misoginia e a cultura do estupro.
      Obrigada pela sua colaboração aqui no blog! Continue nos acompanhando por aqui e pelas redes sociais 🙂

  2. Karen Brandão says

    Infelizmente é bem assim, Isabela. Eu tenho medo de sair na rua sozinha todos os dias.
    Quando trabalhava há 4 quadras de casa e ia à pé, passava na frente de uma obra e todos os dias alguém dava um assobiozinho, um “e ai gata” e coisas do tipo. Tive que começar a passar do outro lado da rua e fingir que nada estava acontecendo. E detalhe: era praticamente do lado de uma delegacia!
    Outra coisa que aconteceu semana passada comigo foi o seguinte: no caminho para o restaurante que era perto de casa, estava com meu irmão e a namorada dele, estava andando um pouco atrás deles na hora que passamos em frente a um bar e também ali tive que ouvir esses comentários ridículos, como se fosse um pedaço de carne andando na rua! Me contive e apenas pedi pro meu irmão me esperar, para que vissem que eu não estava sozinha ( se é que isso importa pra eles, né?). Mas a minha vontade era mesmo ir lá e perguntar se eles gostariam que fosse a mãe deles, ou irmã, ou prima que estivesse sendo assediada no meu lugar! Claro que não fiz isso por medo de ser agredida de outra forma!
    Ser mulher é viver com medo. Triste, mas a realidade.
    Um beijo, Isa.

    1. Isabela Nicastro says

      Sim, Kah. É exatamente assim. Diariamente temos que lidar com abusos e desrespeitos. Ser mulher é conviver com o medo, infelizmente. Acredito que, cada vez mais, precisamos nos unir e mostrar a força que temos. Juntas somos mais fortes!
      Que bom que gostou do texto, Kah <3

      Beijo grande!

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